O Caminho do Céu

Conto de Eduardo Kasse une realidade e ficção para narrar trajetória de Santos Dumont.

Zine Voador
7 min readMar 28, 2021
Ilustração de XTO, 2021.

Texto de Eduardo Kasse, autor da Série Tempos de Sangue, da Saga Vikings e de vários contos de fantasia histórica medieval e antiga. Ilustrações de XTO, educador do Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Guarulhos.

Ao final do conto, confira um vídeo mostrando o processo de criação de uma ilustração originalmente prevista para o projeto, mas que acabou sendo utilizada na nossa primeira postagem.

23 de julho de 1932, quarto 152, Grande Hotel de La Plage, Guarujá-SP.

– Não foi para isso que eu o inventei. — Pôs o copo vazio sobre o desenho do Demoiselle feito a caneta, borrando-o com um círculo úmido que ia se expandindo devagar no papel amarelado, enquanto as lágrimas trilhavam as rugas do seu rosto magro e de barba bem feita. — Eu apenas queria dar às pessoas o caminho do céu. Não… isso. Nunca… isso.

1876, Cabangu-MG.

– Papai, pagagaio de papel!

O menininho correu pela grama ainda úmida com o sereno da madrugada. Lá embaixo, os trabalhadores da estrada de ferro labutavam desde o raiar do sol. No alto da pequena colina, os seus filhos brincavam de soltar as pipas coloridas que encantavam o pequeno Albertinho, como era conhecido o herdeiro do engenheiro Henrique Dumont, um dos responsáveis pela construção daquele trecho da ferrovia.

Avoa, pagagaio! Avoa!

– Venham tomar café! — A mãe, Dona Francisca, com a mão sobre a barriga grande devido à gravidez, acenou. — Tem pão de queijo e doce de leite.

O pequeno foi ligeiro até ela, sem tirar os olhos dos papagaios, o que lhe rendeu alguns tropeções e quedas sem gravidade.

Pagagaio de papel, mamãe! No céu!

– Eu vi, meu filho — ela afagou os cabelos desgrenhados. — Você gosta muito deles, não é?

O menino ergueu os dois braços e começou a pular.

– É, Francisca… — sorriu o marido. — Enquanto eu ganho a vida fazendo os trens correrem pela terra, acho que o nosso menino vai é tomar o caminho do céu.

1880, Ribeirão Preto-SP.

– Me dá o grude, Pedro. — O jovem Alberto passou a cola feita com trigo, polvilho e água com cuidado no papel vermelho antes de dobrá-lo sobre a vareta de bambu. — Quero que esse papagaio voe mais alto que o Morro do Piripau.

– Tão alto assim? Ai! — O rosto de Pedro se contorceu quando ele furou o dedo na ponta da tesoura.

– Deixa que eu corto isso. — Albertinho tomou-a da mão do amigo. — Tesouras são perigosas para crianças.

– Nós dois temos sete anos! — O menino chupava o dedo ferido enquanto o amigo continuava a confeccionar o papagaio.

– Tá subindo, Albertinho! — Pedro protegia as vistas do sol com a mão. — Vai voar mais alto que as nuvens!

O menino Santos Dumont olhava a linha se desenrolar depressa. O vento forte o fazia ter de segurar firme o carretel que, por duas vezes, quase escapuliu da sua mão.

– Tá na altura dos urubus, Albertinho! — Pedro ergueu os braços. — Tá tão…

O menino arregalou os olhos quando a vareta de taquara onde a linha se prendia se partiu e rasgou o papel, fazendo o papagaio cair depressa.

– Eu sabia que as varetas eram finas demais! — Santos Dumont jogou o carretel no chão.

– Não fica bravo, Albertinho. A pipa voou bem alto.

– Voou e caiu. E já te disse: é papagaio. Vocês, paulistas, falam errado. — Alberto olhou para o céu onde os urubus voavam em grandes círculos. — Escuta o que eu tô te falando, Pedro. Eu ainda vou achar o caminho do céu! Ainda vou voar igual a um pássaro.

Ilustração de XTO, 2021.

1905, Paris-França.

– Qual é o projeto da vez, senhor Dumont? — Um dos seus mecânicos coçou a cabeça ao ver o croqui aberto sobre a mesa. — Esse dirigível está estranho. Parece uma ave.

– Isso mesmo, meu caro Luis. — Santos Dumont sorriu e cofiou o bigode bem aparado. — O nosso projeto Nº 11 será um planador.

– Depois que ganhou o Prêmio Deutsch vai desistir dos dirigíveis? — Luis olhou para o teto do grande galpão onde as pombas arrulhavam, pousadas nas vigas de madeira.

– Não, meu caro. — O inventor estalou os dedos e observou as diversas armações, lonas e motores espalhados pelo chão. — Continuarei com eles, mas quero voar, digamos, como os pássaros voam.

– Batendo as asas?

– Já tentaram isso e não deu muito certo. — Dumont olhou as duas pombas voando para fora do galpão. — Farei diferente, Luis. Farei melhor.

A lancha puxava o planador pelo rio Sena sob o olhar atento do inventor, que acompanhava tudo da margem. O monoplano subiu sem estabilidade alguns centímetros sobre a água. E caiu como se fosse feito de pedra.

– Acho que esse troço nunca vai decolar. — Luis espantou uns mosquitos com o chapéu. — É pesado demais.

– Tá vendo aquele ganso, Luis? — Dumont apontou para a ave na outra margem. — Ele é pesado e desajeitado. Mas no ar ele voa com graça. Então, ao invés de ficar matraqueando como uma gralha velha, você pode me ajudar. E nunca se esqueça disso: eu ainda vou conquistar o caminho do céu!

Santos Dumont se virou e saiu pisando duro quando o piloto desligou o barulhento motor da lancha que rebocava o Nº 11.

12 de novembro de 1906, Paris-França.

– Está voando! — Luis assoviou. — O 14-Bis lá em cima com o senhor Dumont! Não é que ele conquistou o tal caminho do céu?

O Oiseau de Proie III não subira muito, apenas uns poucos metros do chão, mas já voara a distância de mais de duzentos metros sobre o Campo de Bagatelle, onde dezenas de pessoas comemoravam tal feito.

Luis correu até o seu patrão, que descia do delicado avião de asas de seda envernizadas.

– E agora, homem de pouca fé — o inventor tirou o chapéu –, você acredita em mim?

– Nunca duvidei, senhor Dumont!

– Hoje você pode descansar, Luis. — Santos Dumont acenou para a multidão que o cercava. — Amanhã a gente recomeça o nosso trabalho. Tive uma ideia para um novo modelo de aeroplano.

– Conte comigo! — Luis, assim como todos em Bagatelle, ovacionou o inventor com uma salva de palmas.

04 de janeiro de 1910, Paris-França.

– Está caindo! — Luis levou as mãos à boca.

O Demoiselle VIII caiu a cerca de vinte metros do mecânico, pois a asa do pequeno avião, feito de bambu e seda e parecido com uma libélula, rompeu-se quando ele estava a trinta metros de altura.

Santos Dumont, atordoado, desceu com a testa ferida e desabou no chão.

– Senhor Dumont, está bem? — Luis, esbaforido, ajoelhou-se ao lado do inventor. — Vamos ver um médico!

– Não será preciso. — Alberto limpou o ferimento na manga do macacão azul que cheirava a óleo. — Vamos para casa. A minha cabeça vai ganhar um galo e vou ter dores por alguns dias, mas nada além disso.

– Logo o senhor voará novamente. — Luis o ajudou a ficar de pé.

– Não, meu amigo. Os meus dias como piloto acabaram. — Encarou Luis enquanto uma lágrima solitária escorria do canto do olho.

– Senhor Dumont! Já o vi sofrer acidentes piores e…

– Dos acidentes eu sempre me reergui. Agora, do que acontece na minha cabeça, no meu coração, não sei se posso me libertar… Os dias estão se tornando confusos e cinzas, Luis.

Luis nada mais disse, apenas serviu de apoio ao inventor, que caminhou devagarzinho, arrastando os pés, até o carro que os levaria para casa.

Meses após o fim da primeira guerra mundial.

O meu sonho se tornou o mais horrendo dos pesadelos. Eu vi a morte cair dos céus e explodir tudo em terra. Soldados, pais, mães, filhos, órfãos… Bombas não fazem distinção, são cegas. Arruínam o bom e o mau e deixam a terra outrora verde, radiante, coberta de cinzas e com cheiro de pólvora.

Meus aeroplanos não foram projetados para a guerra. Eles foram pensados para a vida, para encurtar distâncias e unir as pessoas. Mas todas as barbáries que vi me fizeram duvidar do propósito da minha invenção. Eu criei os pássaros da ruína. Eu criei a morte alada.

Alberto leu pela última vez a carta nunca enviada que escreveu para o seu sobrinho Jorge. Jogou-a no fogo junto com centenas de anotações, croquis e estudos. Pôs a testa sobre a mesa e chorou até adormecer, exausto.

Manhã de 23 de julho de 1932, Guarujá-SP.

Eu inventei a desgraça do mundo! — Santos Dumont olhou para o céu e viu três aviões Waco, conhecidos como Vermelhinhos. Tapou os ouvidos.

– Esse barulho… Esse ruído infernal! — crispou os dentes. — A minha invenção será a ruína dos homens.

– Não é porque alguns a usam para fazer o mau que a sua invenção é ruim, senhor Alberto. — O jovem charreteiro Antônio levava o inventor para um passeio pela praia. — Essa tal Revolução Constitucionalista logo vai acabar e as bombas deixarão de cair.

– Agora é tarde, filho…

– Tarde para quê?

Alberto nada respondeu. Sempre de olhos no céu, fez um gesto vago, deixando que o rapaz o conduzisse de volta ao hotel que se tornaria a sua última morada.

Agora, confira o processo de criação de uma ilustração originalmente prevista para este conto:

--

--

Zine Voador

Experimento artístico entre o Sesc Guarulhos e Sesc Itaquera fala sobre objetos voadores para o FestA! — Festival de Aprender — 2021