Fabulação de Passarolas | parte 1

Zine Voador
3 min readMar 21, 2021

--

Lisboa, século XVIII. Mais precisamente, 3 de outubro de 1709. Bartolomeu de Gusmão, cientista, inventor e sacerdote nascido na Capitania de São Vicente, atual cidade de Santos (SP), demonstrou exitosamente para a Coroa Portuguesa que era possível construir um “instrumento para se andar pelo ar”: a “Passarola”, como ficou conhecida na época ou, se preferirmos seu nome científico, “aeróstato operacional” ou, se preferirmos seu nome mais popular (e hoje, fora-da-lei), “balão” (esse mesmo, das festas juninas).

Esse evento é relevante às discussões que realizamos nos Espaços de Tecnologias e Artes das unidades do Sesc localizadas em Itaquera Guarulhos por muitos motivos.

Gusmão foi o primeiro inventor nascido no atual território brasileiro a ter patentes reconhecidas pela Coroa Portuguesa. Além da Passarola, criou uma bomba elevatória para transportar água do rio Paraguaçu até o Seminário de Belém (Cachoeira/BA), a mais de 100 metros acima do nível do mar. Inventou também um sistema de drenagem para navios e uma composição de lentes para assar carne no sol (é gambiarra que chama?)

Mas não é (só) isso que nos interessa.

Ainda que não tenha obtido da Corte o apoio técnico que desejava para passar dos estudos com protótipo para um mecanismo capaz de transportar gente, a invenção do “Padre Voador”, como ele ficou então conhecido, atiçou a imaginação europeia naqueles anos. Muitos folhetins comentaram as demonstrações de voo e publicaram diversas versões fantasiosas (e cheias de humor) do invento — provavelmente, com a anuência do próprio Gusmão, que queria desviar o foco de seus estudos reais. Foi, aliás, graças a uma dessas ilustrações num periódico austríaco que o aeróstato ganhou o nome de Passarola. O mais curioso éque essa versão falsa ficou tão famosa, mas tão famosa, que tem até uma maquete dela no Museu Nacional Aeronáutico e do Espaço, no Chile (fonte: Wikipedia). Seria a Passarola uma fake news trending topic da Corte de Dom João V?

Mas também não é (só!) isso que nos interessa.

Um “tal” José Saramago escreveu em 1982 o romance Memorial do Convento. Adivinhou quem é um dos protagonistas da obra? Nela, Bartolomeu de Gusmão ganha a companhia de dois ajudantes: Baltasar Sete Sóis, um soldado que volta sem uma das mãos da guerra, e Blimunda Sete Luas, sua companheira, mulher capaz de enxergar “por dentro” das coisas e única pessoa que pode recolher para o inventor a matéria-prima necessária para fazer os balões voarem: a vontade intangível que nos habita, o verdadeiro éter tão buscado pelos alquimistas.

Mas também não é (só?) isso que nos interessa.

Uma outra “tal” Ana Maria Gonçalves resolveu fazer certa reparação histórica e homenagem a Saramago em seu romance Um Defeito de Cor, de 2007. Em uma pequena passagem do livro, a protagonista Kehinde encontra cartas escritas por um homem negro ex-escravizado a seu filho. Nelas, fica evidente que os conhecimentos adquiridos pelo padre Gusmão e a decorrente invenção da Passarola só foram possíveis pelo apoio intelectual e laboral de Zimbo, o autor dessas cartas, também ele um maneta, como Baltasar Sete Sóis, mas que havia perdido a mão numa moenda de cana.

É um pouco disso tudo que nos interessa.

A Passarola imbricou desde sua elaboração, uma rede de conhecimentos em engenharia física, química, alquimia e, também, poeticidade e arte. Entre voar ou não voar, ela transita da inventividade técnica à potência ilimitada de nossa imaginação para traduzir o mundo que nos rodeia. Um mundo, vale dizer, que parece carecer hoje dessas leituras poéticas para ter vontade de seguir adiante e pensar novos horizontes de ação.

--

--

Zine Voador
Zine Voador

Written by Zine Voador

Experimento artístico entre o Sesc Guarulhos e Sesc Itaquera fala sobre objetos voadores para o FestA! — Festival de Aprender — 2021

No responses yet